Texto escrito por Daniel Schenker para o Projeto Sergio Britto • Memorias
A trajetória de Sergio Britto atravessa os momentos mais importantes da história do teatro brasileiro na segunda metade do século XX. Ator e diretor, Britto começou seu percurso artístico no Teatro Universitário, em 1945. Capitaneou, ao lado de Sérgio Cardoso, o Teatro dos Doze, que durou apenas o ano de 1949. Trabalhou em companhias sólidas como o Teatro Popular de Arte e o Teatro Brasileiro de Comédia, em São Paulo. Na volta para o Rio de Janeiro, foi um dos fundadores do Teatro dos Sete. Esteve à frente da incomensurável aventura do Grande Teatro da TV Tupi. Conduziu ainda a programação do Teatro Senac, do Teatro dos Quatro, do Teatro Delfim e do Centro Cultural Banco do Brasil. Mas há um capítulo igualmente importante em sua carreira: o do vínculo com a Casa das Artes de Laranjeiras (CAL).
Sergio Britto foi determinante na fundação da CAL, escola de teatro que surgiu em 1982, como observa Gustavo Ariani, diretor da instituição. “No ano anterior, fizemos vários encontros com ele e com Yan (Michalski) para pensar no projeto da CAL. Ele acreditava totalmente. Desde o início se colocou à disposição para colaborar como professor e pensador. Disponibilizou as instalações do Teatro dos Quatro para as inscrições”, aponta Gustavo, que conheceu Sergio no final da década de 70.
Nos primeiros momentos, o carro-chefe da CAL era o curso que Sergio ministrava com a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller – intitulado A arte de representar sentimentos e sensações. “Eles dirigiram o primeiro espetáculo com os alunos – Exercitando”, relembra. Ao longo dos anos, Sergio Britto assumiu diversas funções dentro da CAL. “Ele dava palestras, conduzia um curso de cultura com Victor Giudice, deu aula de interpretação”, enumera.
Gustavo firmou parceria com Sergio fora da CAL. Foi codiretor em duas óperas – O elixir do amor, de Gaetano Donizetti, e Macbeth, de Giuseppe Verdi – que ganharam versões assinadas por Sergio. “Ele mantinha uma inquietação até a estreia e mesmo depois. Nós sentávamos à noite no bar Manoel & Joaquim, da Rua Gomes Freire, para comer salgado. E precisávamos estar de volta no teatro de manhã. Ele comia de tudo. Sempre acompanhado de guaraná”, evoca. Juntos fizeram Uma pitada de sorte, minissérie infanto-juvenil exibida na TVE. Sergio atuava ao lado de Rubens Corrêa, Ítalo Rossi, Alice Reis e alunos da escola. Eric Nielsen, também fundador da CAL, dirigia. Gustavo ficava encarregado da direção musical. E Alice Reis, do texto.
Eric Nielsen conheceu Sergio Britto na época em que era aluno de direção do Conservatório Nacional de Teatro. “Eu, Yan e Glorinha nos unimos em torno do projeto da CAL. Sergio não era tão próximo da Uni-Rio por se afinar menos com o rigor universitário”, afirma. Em 1976, Eric fez o primeiro trabalho com Sergio – Águas claras, adaptação da peça Nossa cidade, de Thornton Wilder, exibida na TVE. Sergio atuava e Eric era assistente de direção e coadaptador (com Sergio). Depois veio o já citado Uma pitada de sorte.
Eric participou do curso inaugural do Teatro dos Quatro, ao lado de Sergio, Amir Haddad, Hamílton Vaz Pereira e Glorinha Beuttenmüller. “Já era um ensaio para a CAL, que, num primeiro momento, iria se chamar Escola Sergio Britto. Ele é que não quis”, comenta Eric, que, porém, anuncia o lançamento do Espaço Sergio Britto na Faculdade CAL, que abrirá as portas em março, na Glória. “Acho que Sergio era portador de uma solidão curiosíssima. Ele conseguia ser feliz na solidão. Por isto, buscou o teatro”, aposta.
Hermes Frederico, coordenador da CAL, travou contato pessoal com Sergio Britto por intermédio de Glorinha Beuttenmüller, em 1980. “Ele foi o padrinho, o grande incentivador da escola. Foi professor, idealizador, diretor. Quando voltou à escola nos anos 90, deu um curso com Glorinha chamado Na arena com os leões”, destaca.
Como espectador, Hermes “conheceu” Sergio bem antes. “Quando criança, sempre ouvia falar nessa turma – Sergio, Fernanda, Nathália. Ele foi muito importante no Grande Teatro da TV Tupi, no sentido da formação de plateia. A primeira vez que o vi foi no cinema, no filme Society em baby-doll”, diz Hermes, citando a produção de Luiz Carlos Maciel e Waldemar Lima, realizada em 1965, aos 7 anos. “Depois o vi em A legião dos esquecidos, na TV Excelsior. No teatro assisti a Sergio na montagem de O marido vai à caça. Em seguida, conferi a direção dele para Os filhos de Kennedy e seu trabalho em A noite dos campeões. Daí em diante, não perdi nenhum espetáculo”, garante. Como produtor, Hermes convidou Sergio para participar de três espetáculos – Longa jornada de um dia noite adentro, de Eugene O’Neill, As pequenas raposas, de Lilliam Hellman, e Outono e inverno, de Lars Norén.
Glorinha Beuttenmüller, também madrinha da CAL, se deparou com Sergio na montagem de O marido vai à caça, quando o ator teve um problema vocal. “Ele recuperou a voz e ficou encantado. Nós nos tornamos amigos. Passei a desenvolver um constante trabalho vocal com ele, que chegou a incluir os exercícios de voz dentro de um espetáculo – Tango. Ele me chamava sempre. Estive ao seu lado nas montagens de Os veranistas, Papa Highirte, Rei Lear”, enumera.
Os veranistas foi um capítulo especial. “Sergio não acertava a voz. Eu perguntei: ‘Sergio, você tem 50 anos ou meio século?’ Ele respondeu: ‘50 anos’. Aí ele encontrou a postura certa. Até então, estava fazendo um homem de 50 anos como se fosse gagá”, descreve.
O que faz com que um ator perca a voz? “Normalmente, o fato de o ator não assumir na forma e na essência as palavras que diz. Quando o ator não assume a palavra, ela emudece. O trabalho de voz é uma coreografia sonora do texto. É preciso saber ouvir, enxergar, sentir o gosto das palavras”, resume. Nos últimos anos, Sergio ficou rouco. Foi no monólogo Jung e eu e novamente a ajuda de Glorinha se revelou determinante. “Ítalo (Rossi) disse que eu sou o seguro vocal do Sergio Britto”, comenta Glorinha, que também trabalhava com elencos inteiros (abordando separadamente cada ator), a exemplo de sua direção vocal interpretativa em A ópera do malandro.
por Daniel Schenker